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quinta-feira, 22 de abril de 2010

E voa

Não sentira mais nada depois das palavras, duras e secas, cravadas como uma lança que fere bem fundo e arde depois, mas passa. Esse hábito desagradável das discussões já havia sido esquecido. Esperava incansavelmente por qualquer demonstração de reconhecimento, mas nada viria, nem depois. Aceita e sai, com sua preguiça rotineira, cotidianidade que incomoda.

Tilintar de moedas e rabiscos no caderno entre fios do fone onde saem algumas músicas lentas. Abre a bolsa e pega a foto que tirara fazia um mês mais ou menos, não lembra. Tenta a tarde inteira, portanto não adiantava, a memória nunca a ajudava, falhava em momentos que ela não suportava admitir isso, falhava apenas, admitia por fim, não tentava mais.

Talvez também não se lembre, mas sonhara na noite passada. Seria um sonho inútil, a ponto de nem se lembrar que sonhou? Não sabe, então cria seus sonhos, ou os recria, da maneira como realmente gostaria, como vê o melhor pra si, se é que é o melhor.

Céu escuro e muitas estrelas. Prefere não admirá-las nessa noite, acende seu mini abajur e briga com o sono e com aquela luz difusa que dificulta a leitura, o braço também dói com o simples ato de segurar o livro, vira-se tantas vezes que já consegue notar algumas dobras na ponta da página marcada. Prometera sem nenhum motivo concreto levantar-se cedo, andar pela casa vazia, apreciar o sol da manhã, talvez o único que gostava, pra depois pensar em realmente utilizar esse tempo todo concedido por sua interrupção no sono, outrora tão valioso.

Aquele mesmo sol que antes seria pra apreciar, agora joga seus raios fortes e quentes na cara que tem marcas do lençol fino que cobrira os pés frios pela noite, os mesmos pés que a conduziram ao devaneio de sombras por tantos cantos e diversos momentos fugiram sem explicação, nem mesmo pra si, que pouco sabe das coisas, e que tanto quer saber.

As obras que lê, os filmes que gosta, os pensamentos mais baratos. Simplicidade e necessidade se fundem como a tristeza e a alegria que não são como o óleo e a água, elas convivem. Lembrara disso do filme da noite passada, que vira deitada sobre o tapete e que ao se levantar notara que as pernas estavam marcadas, e que sempre haveriam marcas, quaisquer que fossem, sempre estariam presentes, boas ou más, bem vindas ou não. No momento as marcas têm sido aprofundadas, ela quer que sejam ainda mais, pois não as conhecia até então, e coisas novas sempre tem aquele êxtase, de coisa nova mesmo! E percebe a cada dia que a novidade também começa, assim como as outras banalidades de sua vida, a se tornar uma rotina, e passa a não ser mais uma novidade. Só há uma coisa que a diferencia: vontade. Da vontade surgem mais outras coisas, que dão em outras mais e que só se conclui em algo como ‘nunca pensei, mas não tenho vontade de mais nada, a vontade disso me basta. ’

E vê, e abraça, e senta ao lado sorrindo, e sorrindo o beija. Vida (...). E escorrega as mãos sobre os braços e a respiração é rápida como foi dito, nem percebera antes. Vontade (...). Sabe que já chega a hora de se despedirem, finge não se importar, por dentro dói, fala que partirás junto, mas suas próprias palavras, e vontades, a traem.

As costas viradas subindo a rua vão se distanciando, pouco a pouco, sem pressa. Escorada sem coragem de dizer, demonstrar qualquer coisa, esboçar um sentimento.

Molha o rosto com a água da bica, se culpa. Frágil como uma semente, que concentra dentro de si uma energia enorme, só precisa de um solo firme pra germinar. Ventos de qualquer direção a empurram fazendo com que voe, fixa-se pelos cantos e espera outro vento mais forte, na direção contrária, levá-la ate aquele solo, que a encanta e que aprecia sem pressa, com paciência invejável.

A voz ouvida com dificuldade do outro lado da linha telefônica mistura-se a ruídos. Fala de cabeça baixa, como se o outro tivesse enxergando-a, fecha os olhos e vê a semente parada de um lado, vento forte vindo do outro, junto com uma chuva que inundará o ponto mais alto, exceto aquele onde ficará a semente que tanto desejou e nada mais via, em seu estado de contentamento (...).

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Um Rio de coisas


Batalhaste tanto na noite anterior, lutando severamente contra o cansaço, que acordou já tarde com fortes dores nos membros superiores. Pretendia ter feito tanta coisa durante aquela longa noite, mas foi incapaz de levantar-se da cama e sentar na cadeira próxima e confortável de seu quarto. O frio a deixa pensativa, cheia de vontades, apaixonada por qualquer inseto que nela repousasse e, triste também. Triste porque sabe que lá fora a chuva cai ferozmente inundando parte da cidade, impossibilitando-a e negando-lhe o abraço quente, triste porque esse frio que antes lhe encantava agora é tão assustador quanto um animal selvagem. Sozinha o tempo multiplica-se inúmeras vezes, suas mãos gelam e a boa resseca, o lápis surge como um refúgio no sofá, um gato dormindo e um edredom cobrindo as pernas.


Compreende que nem sempre aquela necessidade pode ser suprida, aniquilada do seu peito, a vontade vai aumentando, a saudade começa até a brotar, enraíza-se com força e vitalidade e vai lhe roubando as energias, vai consumindo também a mais profunda gota de vaidade e pouca coisa sobra. O que resta agora é o suficiente para mais alguns dias, arrastados e que serão apenas mais uns poucos dias daquela freqüente nostalgia.


E recomeça a ventania vinda sabe-se lá de onde, que faz balançar a persiana colorida, criando naquela ambiente que só tocam músicas baixas, a fim de não incomodar os outros, uma mistura desagradável de ruídos e batidas. Na cadeira, de costas pra janela, sem se importar com aquela barulheira, desenha. Separa no canto o que foi prometido a um amigo distante, desenhos bonitos e frases. Os outros papéis ela faz questão de datar, e mais do que isso, faz questão de ter algum símbolo ou mero rabisco correspondente a sua necessidade.

Um banho rápido, um copo d’água, dois comprimidos. A foto em cima dos livros, colocada ao lado das folhas amareladas que lhe alegram o olhar, que ela relê e não cansa de observar os traços das letras e dos rabiscos (...)


Desliga a TV e retorna à mesa, uma bolinha verde e um sorriso, aquele sorrisinho que faz quando está num sono bom, que ela insiste em não se esquecer nem das batidas mansas do coração nem das freadas do carro, dos gostos, da pele, do beijo (...)

“No entanto, ela valia, para ele, como ele para ela, mais que o mundo inteiro.”

E sorri feliz, vivamente, sem medos, sem dúvidas, sem ninguém pra sorrir com ela, mas sorri.